Ser mãe, a escola que ensina a amar, a crescer e a nunca desistir
“Era o olho ou a vida”, conta Bianca Chaló Carlos Santos, mãe da Nicole Carlos Santos. A filha tinha sido diagnosticada com retinoblastoma, um tipo de câncer no olho, aos três anos de idade. Na época, Bianca estava grávida de seu segundo filho.
É como dizem: o amor nos deixa mais fortes. Foi o amor por Nicole que fez Bianca procurar locais que poderiam ajudar sua filha, em vez de esperar as soluções virem até ela. Descobriu que na unidade da USP em Bauru, sua cidade, havia uma professora que atendia crianças com deficiência visual de toda a região.
A professora atendeu Nicole com um empenho e uma dedicação que não se aprende em nenhuma faculdade de pedagogia. Ela ensinava braille por meio de brincadeiras que Nicole gostava, como Bárbies e a dança das cadeiras.
Ela pedia que Bianca participasse das aulas para que a mãe pudesse estimular a filha a se desenvolver também fora da sala de aula. Além de braille, Nicole aprendeu noções espaciais básicas, treinou a pontinha dos dedos para sentir o braille e até foi para a cozinha!
Depois de um ano, a professora foi demitida e toda a região ficou sem ter como dar apoio às crianças com deficiência visual. A história poderia terminar aqui, com Nicole esperando até hoje uma professora ser contratada e retomar os atendimentos. Mas essa história é da Bianca e de sua filha, e ela decidiu escrever outras palavras no seu caminho. A situação a deixou indignada e ela procurou a Justiça para conseguir dar atendimento digno à sua filha.
Enquanto o processo corria, Bianca juntou todos os ensinamentos da professora da USP e colocou-os em prática. Bianca fez de tudo para que a educação da filha não fosse freada; Nicole continuou, inclusive, a frequentar a escola regular, onde foi alfabetizada com letras de forma recortadas em EVA.
Demorou um ano para que o governo lhe desse uma resposta sobre a continuação dos atendimentos da Nicole. A Justiça decidiu que a Prefeitura precisaria pagar a passagem de ônibus de mãe e filha até a capital paulista, para que a pequena tivesse sua reabilitação na Fundação Dorina.
Nicole tinha atendimento em São Paulo uma vez por semana, e eram dias em que as duas mostravam mais uma vez sua força de vontade: elas acordavam por volta das 4h da manhã e voltavam para Bauru às 23h.
Essa rotina durou um ano, período em que Nicole aprendeu definitivamente a ler o braille e andar com a bengala.
No entanto, os obstáculos não tinham acabado. Estudando em escola regular, Nicole não tinha seus livros acessíveis. Onde alguns veem problemas, a Bianca viu a solução: ela mesma aprendeu o braille para transcrever os livros para a filha.
Ela deu conta no começo, quando os textos não eram tantos. Mas quando aumentou a quantidade de textos e tarefas na escola “por mais que eu varasse madrugadas e passasse a manhã inteira, às vezes eu não dava conta”, diz ela.
E poucas coisas eram piores do que ver sua filha chegar em casa, frustrada porque os coleguinhas de sala leram um texto que ela não tinha. Nicole não apenas gostava de estudar como também de ler.
“Eu sentia um desespero, não sabia que rumo tomar”, revela a mãe. Ela procurou outras alternativas, mas não encontrou respostas até a Reatech 2017, a maior feira de tecnologias em reabilitação da América Latina.
Mãe, pai e filha visitaram a feira buscando livros infantis e brinquedos acessíveis. Andaram por muitos corredores, passaram por dezenas de estandes, mas depois de horas a frustração mostrava suas garras.
Antes que o sentimento engolisse o trio, Bianca pediu para a filha escolher um livro em tinta que ela mesma faria a transcrição. Nicole mostrou que a deficiência, os desafios e os contratempos não tiraram dela sua infância e sua imaginação, e ela decidiu que queria ler Alice no País das Maravilhas.
Até que uma pessoa chamou a atenção da família para um estande de tecnologias assistivas. O espaço era de uma empresa que eles não conheciam, chamada Tecassistiva. Os três se aproximaram e viram uma linha braille Focus 40 Blue acoplada a um Sara PC, e uma das pessoas do local colocou um livro sobre o scanner. E, na frente dos olhos incrédulos de Bianca, a linha braille transformou o texto de tinta para braille.
“Posso fazer isso com qualquer livro?”, enquanto me contava, ela imitou o tom atônito na voz que fez na hora. A mãe pegou o livro que tinha acabado de comprar e colocou sobre o Sara PC. Em segundos, a linha braille transformava letras em bolinhas!
“Eu comecei a viver de novo depois de comprar a linha braille”, declara ela com alegria. Agora, Bianca pede os livros didáticos da filha em formato PDF para as editoras. Assim, Nicole lê-os na linha braille. Como esse não é o formato mais adequado de livro, a mãe ainda precisa fazer algumas descrições de imagens para que Nicole tenha acesso a todos os conteúdos, mas Bianca calcula que, com a linha braille, ela economize por volta de 80% do tempo que dedicava à transcrição dos livros inteiros.
Com esse tempo a mais, ela consegue dar mais atenção para todos os seus três filhos, Nicole, Davi e Manuela, além de ter voltado a estudar. Mas não administração, faculdade que trancara quando ficou grávida de Nicole, mas sim pedagogia, o curso que seu amor de mãe já lhe deu diploma com notas de excelência.
Se engana quem acredita que a cegueira de Nicole a tornou diferente dos irmãos: “a hora da diversão, da lição de casa, da bagunça, de dormir, é sempre para os três”, conta, rindo. Coração de mãe não é só aquele que sempre cabe mais um, como também aquele que não distingue raça, gênero e deficiência.